Vida Interrompida.

Na verdade, na verdade vos digo que, se o grão de trigo, caindo na terra, não morrer, fica ele só; mas se morrer, dá muito fruto. (João 12:24)

Um aborto espontâneo. Uma vida interrompida. Duas, talvez, deveríamos dizer. Uma mulher que acorda grávida e feliz, tendo que ir dormir se sentindo vazia de ventre e cheia apenas de lágrimas e dúvidas.

Passar por uma gestação que não vai para frente não é algo fácil para ninguém. Algumas pessoas sofrem menos, é verdade, mas a maioria parece ter o coração transpassado. Arrancado do peito. É como ter a alegria de saber-se gestante e de poder celebrar a vinda de uma nova criança, para, semanas depois, ver a felicidade e os sonhos desaparecerem. Isso me aconteceu alguns anos atrás, durante a minha primeira gestação, enquanto morávamos num pequeno país localizado no oceano Índico. Hoje, eu confesso que vivenciar isso tudo em terras estrangeiras fez-me ser visitada por dores que eu não teria sentido se estivesse no meu país de origem quando tudo aconteceu. 

Depois de vários anos de namoro e casamento, meu marido e eu decidimos concretizar nosso sonho de juventude de vir a trabalhar para uma organização cristã servindo a Deus no continente africano. Resolvemos dedicar os dois anos seguintes ao nosso trabalho e ministério, adiando um pouco os planos de termos filhos. Assim, partimos e deixamos para trás nosso antigo lar, nossas famílias, e o nosso conforto físico e emocional. Embarcamos para uma ilha na costa leste da África, onde fomos recebidos de braços abertos por um mundo totalmente diferente do nosso. Longe de tudo o que nos era conhecido, tivemos de nos adaptar a uma nova cultura, transpirar no calor dos trópicos e aprender dois idiomas diferentes (e ainda conviver com um terceiro, usado apenas em eventos religiosos). A cada dia, tínhamos o desafio de conhecer os novos vizinhos e aos poucos permitir que eles se transformassem em amigos. Isso tudo sem falar na equipe que servia conosco, composta de oito irmãos de fé oriundos de diversos países anglófonos. 

Assim que chegamos na nossa nova casa, percebemos que o nosso casamento era algo bizarro para os ilhéus. Normalmente, naquele contexto, um homem e uma mulher se unem em matrimônio para começar a ter filhos. Dessa forma, não compreendiam o porquê de nós havermos decido adiar uma gravidez por tantos anos. Além disso, na cultura local, a mulher ainda é a primeira a ser responsabilizada quando as crianças não vêm. Assim sendo, diversas pessoas me olhavam com pena e compaixão quando me viam caminhando na rua. 

Minhas amigas, sem entender nossa tendência ocidental de tudo querer planejar, me encorajavam e me abençoavam, suplicando ao Criador que ele viesse a me dar muitos filhos. Ao meu marido, os homens (e até mesmo algumas mulheres) ofereciam constantemente uma segunda esposa. Sugeriam a ele alguém com quem pudesse enfim usufruir da bênção de ter herdeiros. Toda essa situação nos incomodava um pouco, mas, sempre que possível, tentávamos responder a todos com bom humor. Aproveitávamos para explicar o nosso posicionamento e a nossa visão sobre a monogamia. Verdade seja dita, não era fácil sentir como se eu precisasse constantemente defender as minhas escolhas. Às vezes, eu me pegava até mesmo a me questionar se estávamos realmente certos em querer esperar tanto tempo.

Quando então começamos a refletir sobre a possível vinda de um bebê, nós ficamos com uma pulga atrás da orelha. O problema era que, na nossa ilha, as opções de qualquer tipo de tratamento de saúde eram muito questionáveis. Por isso, meu marido temia a falta de cuidado básico caso algo grave viesse a acontecer. Contudo, eu começava a ter pressa de querer me tornar mãe. Meu aniversário de trinta anos estava chegando e eu já estava imaginando que iria anunciar a gestação nas redes sociais através de uma brincadeira: “envelhecendo,  é verdade, mas sem crise nenhuma e com o ventre cheio de amor”. Eu sonhava, sorria, e tentava convencer o meu esposo de que a hora havia chegado. E, embora ele estivesse reticente, também queria muito se tornar pai. Assim, acabamos por concordar em abrir oficialmente o caminho para uma possível gravidez. 

No primeiro mês de tentativas, minhas expectativas estavam lá no céu, mas elas foram todas frustradas. No dia anterior a minha festa de aniversário, a menstruação chegou sem ser bem vinda. Fiquei sem entender o que estava acontecendo. Na festa, uma amiga compartilhou comigo a história da sua vida. Ela havia sido abandonada pelo marido e tinha perdido dois filhos (dos quatro que teve), mas continuava firme na fé. Falou-me que eu podia ter nessa vida a certeza de que iria sofrer, mas que Jesus sempre estaria ao meu lado. Senti o peso de uma profecia que ela, sem saber, estava me entregando. 

Exatamente um mês após o meu aniversário, nossa equipe de trabalho fez um retiro num hotel à beira do mar, onde comecei a sentir uma queimação na boca do estômago. Será que era disso que as gestantes estavam falando quando diziam que estavam com azia? E o que isso quer dizer? Será que estou grávida? No final da tarde, ao pôr do sol, sentamos-nos todos para orar. Inspirada pela beleza da criação e desfrutando da intimidade com os amigos, compartilhei com eles o anseio dos nossos corações: queríamos muito ser pais, mas pedíamos que Deus fizesse em nós a sua boa e perfeita vontade. Eu creio que não tinha a mínima ideia do que eu estava pedindo. 

Voltando para casa, fiz um teste de gravidez de farmácia bem fajuto. Para minha surpresa, ele deu negativo. No dia seguinte, outro teste negativo, e no próximo ainda mais um. A menstruação continuava atrasada, pela primeira vez em toda a minha vida. Tudo estava se complicando, e, para piorar, não havia nenhum laboratório onde eu pudesse fazer um exame de sangue para saber o que estava acontecendo. Uma semana e meia depois, os benditos testes continuavam negativos, e a menstruação também não descia. A minha angustia só crescia. Um dia, fazendo mais um teste “só por fazer”, percebi a presença de um positivo fraquinho, quase que invisível. Podia não ser nada, mas o fabricante alegava que qualquer pequena alteração já era um sinal de presença do hormônio de gravidez. Frente à tanta confusão, decidimos que iriamos visitar uma ginecologista local, alguém que possuía em sua clínica um aparelho de ultrassom. 

Na consulta, a médica encontrou um embrião muito pequeno. Meu coração estava saindo pela boca, e achei que essa notícia iria nos ajudar a encontrar a paz que eu tanto procurava. Ela nos disse, porém, que o meu cálculo pessoal estaria errado. Eu contava que tinha sete semanas de amenorréia (desde a última menstruação), fazendo com que o embrião tivesse cinco semanas. Segundo o seu exame, contudo, eu teria tido um ciclo menstrual de quarenta e cinco dias, e não trinta, com um período fértil difícil de ser apontando. Segundo ela, o bebê aparentava ter apenas cerca de três semanas. Meu marido e eu ficamos desconfiados. Deveríamos acreditar num profissional ou num equipamento de saúde daquele lugar? Tudo estava meio estranho, principalmente porque eu nunca tinha tido um ciclo anormal daquele jeito. Perguntamos-nos se algo estaria errado, alguma coisa que viesse a explicar a presença precoce de alguns sintomas, embora os testes continuassem negativos por tanto tempo.

Apesar das dúvidas e ainda que muito temerosos, nós começamos a nos empolgar. Eu fui a uma lojinha e comprei um par de meias amarelinhas, neutras, e as ofereci de presente ao meu esposo. Eu estava grávida, afinal de contas. Eu era meio mãe. Uma vida em meu ventre, eu tentava celebrar. Encher-me de esperança. 

Decidimos imitar os gringos e não contar nada para nenhum dos nossos amigos. Esperaríamos pelo novo ultrassom, onde veríamos o coração batendo. Ainda assim, nós nos emocionamos muito em revelar a gestação para as nossas famílias, chorando e louvando a Deus numa chamada de vídeo. O coração de todos se apertou. Queríamos muito estar com eles, mas não podíamos. Estávamos sozinhos, mas cada dia um pouco mais felizes. 

Todavia, uma semana mais tarde, durante um estudo bíblico com algumas mulheres locais, eu senti algo estranho. Fui ao banheiro e percebi que tinha começado a sangrar. Com os olhos marejados, dei para a minha colega de equipe a noticia que estava esperando  para compartilhar em lágrimas de alegria. Em casa, meu marido entrou em contato com a tal médica. Ela estava numa vila afastada e nos encaminhou para um outro ginecologista que poderia fazer um ultrassom naquela mesma noite. Enquanto aguardava, fiquei nas redes sociais, onde eu vi amigos celebrando suas gestações. Suspirei fundo e pedi a Deus misericórdia. Cuida do coração do meu bebê, Senhor. Uma oração lá do fundo do meu ser. 

Fomos para o consultório para que eu pudesse ser examinada. Em uma língua que eu ainda estava aprendendo, o doutor me disse, de forma bem seca, que não havia mais nenhum batimento cardíaco. Juro que pareceu-me que o meu  coração também iria logo parar. Eu tremia. Nervosa. Triste. Esforcei-me para continuar a conversa e perguntar o que precisávamos então fazer, mas ter que falar um idioma estrangeiro num momento como aquele foi algo brutal para mim. Ao fim da consulta, eu apenas pedi “perdão”. Ao médico, pelo sangue que eu deixava para trás. Ao bebê, por não ter conseguido dar-lhe à luz. 

No dia seguinte, passamos no consultório da primeira ginecologista, que confirmou o diagnóstico de aborto espontâneo e nos sugeriu que fizéssemos uma curetagem. Aconselhados por médicos brasileiros, nós preferimos esperar o meu corpo expelir o bebê. Antes de me deixar partir para casa, a doutora ainda quis me encorajar, aos modos da ilha, dizendo que eu ainda viria a ter filhos. Eu segurei as lágrimas e, em meu espírito, só pedi que ela parasse de me prometer um futuro tão incerto. E se eu fosse mesmo estéril, como todos ao meu redor acreditavam?

Tivemos que avisar a nossa equipe sobre o aborto. Também comunicamos o ocorrido às nossas famílias, sem poder receber o abraço do qual tanto necessitávamos. Não é justo esse negócio de morrer antes de nascer, eu pensei. Por fim, deitamos naquela cama simples do nosso quarto, tão quente, e apenas choramos. 

Como precisei ficar alguns dias de atestado, recebi a visita de algumas amigas que vinham me dar parabéns. Elas pensavam que eu não estava saindo de casa por ter acabado de descobrir uma gravidez. Aprendi que, na ilha, as mulheres eram aconselhadas a passar os primeiros meses de gestação em repouso. Assim, tive a infeliz oportunidade de ter que contar a algumas pessoas que não, eu não estava grávida. Não mais, pelo menos. 

Para piorar a situação, parecia que elas estavam me culpando pelo acontecido. Diziam que eu deveria ter parado todas as minhas atividades quando descobri a gestação. Não andar de carro em estrada esburacada e não levantar peso. Se eu não tivesse feito nada disso, talvez não teria matado o meu bebê, eu imaginava. 

E embora eu tivesse uma equipe de trabalho bem acolhedora e um marido muito carinhoso, meu coração ficava remoendo um sentimento muito estranho. Eu nunca tinha experimentado o luto. Um sofrimento tão maior do que eu. Minha vida tinha saído do meu controle. Eu queria ser mãe. Eu tinha sido mãe, e agora já não mais sabia o que eu era. Foram alguns dias assim, de começar a chorar do nada, sem mesmo perceber. A dor me tomava conta. O vazio do ventre disputava a atenção com a revolta do peito. Eu me sentia abandonada. Fiquei uma semana meio azeda. Não conseguia fazer uma oração decente. Toda vez que tentava, eu apenas gaguejava e voltava a chorar. Não encontrava uma teologia boa o suficiente para um momento como aquele. A vontade de Deus havia causado ou permitido a minha perda? 

Foi assim até que, numa noite, sentada com o meu marido na sala da nossa casa, em uma tentativa de orar e de escutar um louvor, o sussurro do Espírito finalmente me encontrou. Tive a impressão de que Deus estava me desafiando a enxergar mais longe, a acreditar e ir além da minha compreensão sobre o acontecido. A crer que o meu Pai celestial nunca antes tinha falhado, e que não era agora, comigo, que ele iria começar. Uma canção após a outra, o Senhor me chamava e me pedia que eu confiasse em seu amor. Eu entendi que precisava fazer uma escolha: ou eu me renderia aos seus planos, tão mais altos, entregando a ele toda a minha tristeza, ou eu iria me tornar alguém amarga e para sempre infeliz. Foi muito difícil, mas, numa batalha enorme contra os meus sentimentos, eu resolvi me entregar e confiar. Derramei ainda mais lágrimas e tentei buscar no Senhor o que eu não estava achando em mim. Chorei e chorei, até conseguir dar um passo de fé em direção ao Deus que eu tanto conhecia. 

Naquela simplicidade, eu fui sendo abraçada por uma doce presença e vi meus questionamentos aos poucos serem substituídos por uma lembrança muito forte de quem Jesus era. Eu não ouvi nada e eu não tive visão nenhuma, mas parecia que toda a minha angústia estava sendo momentaneamente trocada por uma certeza muito grande de que ele estava comigo. O único jeito que consigo explicar o que senti é dizendo que o Deus Emanuel me visitou e me deu uma paz que excedeu todo o meu entendimento. 

A partir daquele dia, a dor não sumiu, mas começou a ser acompanhada por um sentimento de cuidado. Um colo. Um consolo. Uma esperança que se mostrou presente toda vez que as dúvidas voltavam à tona. Quando a minha menstruação descia, ou quando as minhas amigas ilhéus me diziam palavras de bençãos e me desejavam filhos, o Espírito de Deus me lembrava que ele não tinha falhado. Não antes. Não nunca. E não comigo. Eu continuava caminhando e acreditando, apesar de tudo. 

Anos depois, eu consigo ver o privilégio que tenho e tive, de poder ser filha e serva do Deus que nunca desiste de nós. Num lugar distante de tudo o que me era confortável e conhecido, de costumes e idiomas tão diferentes dos meus, eu me senti extremamente sozinha e triste. Porém, foi naquele longínquo país, em meio a uma enorme tempestade, que o Senhor soberano de todo o universo se revelou a mim em amor. 

Eu ainda permaneço no campo, numa ilha vizinha àquela. Hoje, tenho a felicidade de ser mãe de três crianças maravilhosas. Penso, contudo, que a semente precisou morrer para vir a dar o seu fruto. Só assim o meu coração pôde aprender que, mesmo nas horas de mais solidão da vida transcultural, o meu Deus sempre cuidará de mim. Alegro-me em saber e em poder proclamar, sem dúvida alguma, que o meu Jesus está ao meu lado e que ele estará conosco até o fim dos tempos. 

Rafaela Speckhann

É escritora, mãe, esposa e mulher multicultural.

1 comentário em “Vida Interrompida.”

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Rolar para cima