Confissão de uma Filha de Terceira Cultura

Em Busca de Pertencimento

Pertencimento! Essa palavra define minha história e minha busca. Pertencimento, parte da minha jovem vida de 32 anos, que mais tive dificuldade de encontrar. E por isso, para escrever esse texto eu levei tempo, muito tempo.

Foi apenas em 2017, quando conheci o PHILHOS (um ministério de conexão e cuidado aos filhos de obreiros transculturais da CIM Brasil) que algumas partes fizeram sentido e até compreendi minha própria história.

Essa história começa com o casamento dos meus pais, que na minha opinião foi um grande choque cultural e social. Bom, todo casamento é um choque cultural por si só. Mas, minha mãe vem de uma família de descendentes de imigrantes com muitas lacunas, feridas e tristes realidades. Ela foi abandonada pelo seu pai, e isso fez com que sua família passasse necessidades como fome, e chegaram a ser despejados, não tendo aonde morar. Finalmente, quando minha mãe estava no início da adolescência o evangelho a alcançou, e assim trouxe novas perspectivas para sua vida.

Meu pai por sua vez vem de uma família grande, com muitos recursos financeiros, uma família da alta sociedade de São Paulo e uma família católica romana, religiosa ao extremo. Com todo esse suporte meu pai foi estudar medicina, ele vivia a realidade da atlética, de festas e viagens. Tudo muito abundante por sua família que não tinha barreiras financeiras.

Minha avó paterna entrou num caso de câncer terminal repentino, ele neste período meu pai começou a buscar sentido na vida e assim começou a buscar a Deus. Diante de muitas situações improváveis, ele decidiu seguir a palavre de Deus e sua conversão ocorreu de forma radical. Quando ele estava no quarto ano de medicina, ele decidiu que iria também estudar teologia. Sua família entra em choque com essa mudança repentina, o que trouxe dificuldades e problemas para sua relação familiar. Naquela época ser evangélico não era comum, não era a religião da classe alta.

Em meio ao conflitos meus pais se conheceram e começaram uma amizade que depois se tornou em casamento.
Eles estudaram no seminário batista teológico em São Paulo, meu pai com um grande desejo de servir às nações como médico e minha mãe o acompanhando. Os anos de passaram , eles começaram a pastorear uma congregação batista, mas ainda com a perspectiva de um dia servir de forma transcultural.

Uma transição inesperada

Entre os anos de 1990 e 1993, meus pais fizeram curtas viagens a Brasília para os treinamentos culturais. Eu e minha irmã, eu nascida em 1991 e ela em 1989, sempre estávamos com eles nesses processos.
Em 1994, quando eu tinha 3 anos, finalmente veio a decisão e a partida para o campo, mas não como meu pai imaginava que seria. Fomos morar no parque nacional do Xingu entre os indígenas, devido a profissão de médico do meu pai, fomos morar no parque, porém existiam conflitos com a Funai pelo fato de meu pai ser pastor também.

Moramos no Xingu por dois anos. Após esse período quando voltamos para a grande São Paulo para um tempo de férias, o seminarista que tinha assumido a igreja no lugar do meu pai em Ribeirão Pires, disse que estava indo embora e que voltaria a entregar a igreja na mão dele. E de repente meus pais decidiram voltar de vez para Ribeirão Pires, uma cidade da região metropolitana de São Paulo. Então, de um dia para o outro, fomos surpreendidos com a mudança de planos.

Nossa casa de base nesse tempo no Xingu, era em Canarana, no Mato Grosso, uma cidade que curiosamente tinha uma população migrante de gaúchos, foi assim que aprendi a tomar chimarrão. Lá também tinha nosso jabuti, e nosso cachorro, o Black, lembro da cena da gente arrumando todas as coisas na varanda da casa, muitas caixas, eu e minha irmã brincando de Barbie. Eu tinha 5 anos e não entendia muito bem o que estava acontecendo. A despedida foi tão rápida, e por causa da viagem de carro de mais de 24 horas, na cabeça do meu pai, isso não permitia que a gente levasse o Black de volta. E assim ele e o jabuti ficaram para trás. Black morreu dois anos depois, de uma doença, mas para mim morreu de tristeza. De saudades.

Voltamos no meio do semestre, eu estava com cinco anos, vindo da aldeia. Além disso, por alguma razão, meus pais decidiram me adiantar na escola, excelente ideia, né?
Assim, fui direto para o pré, sem saber escrever, sem entender porque agora eu tinha que usar calça e tênis todos os dias. Quando antes minha vida era livre de camisetinha e chinelo, e minha escola era a floresta.
Foi um tempo em que eu fiquei muito triste, mas só percebi isso depois, enquanto adulta, só percebi em terapia anos e anos depois.
Tinha sido uma grande transição para todos nós, meus pais muito ocupados, trabalhando na igreja e em vários empregos como médico. Nesse tempo minha mãe aos 39 anos, também engravidou do meu irmão, então foram muitas transições mesmo!

Eu lembro de já me sentir esquisita na escola, meus amiguinhos pareciam saber tudo e eu não sabia nada, e ainda por cima meu tamanho enganava, eu era alta e eles olhavam para mim achando que eu era igual a eles, mas eu não era. Definitivamente não era.

Graças a Deus a diretora da escola do ensino fundamental, não deixou que eu entrasse com 5 anos na primeira série, meu aniversário é só em Março. Assim, eu fui fazer o pré de novo, só que dessa vez na mesma escola que estudei aos 2 anos, e por isso foi um pouco mais tranquilo, um pouco mais adaptável.

Mas eu me sentia muito diferente.

A outra maneira de viver a vida

Na tribo eu vivi muitas aventuras, eu lembro de alguns flashs, algumas cenas, algumas memórias e emoções.

Eu amei o tempo na tribo. Eu andava com roupas simples, era livre, completamente livre, brincava com as índias da minha idade, saía em aventuras para caçar amorinhas, tomava banho no rio transparente, via as arraias na areia, vivia rodeada de plantas, em fim, eu vivia na floresta. Tinham as coisas estranhas também, os rituais dos mortos, os gritos a noite, as pinturas fortes, o isolamento da menina que já tinha menstruado, muitas coisas que eu também não entendia.

Quando não estávamos na floresta e estávamos na cidade , meu pai tinha bastante tempo com a gente. Foi nas ruas de terra de Canarana que eu aprendi a andar de bicicleta. Minha mãe levava a gente para cima e para baixo sempre de bicicleta. Tenho uma doçura que hoje carrego comigo desse tempo. Por sua vez minha irmã teve outra perspectiva dessa época da tribo, mas essa é uma história para outro dia.

De repente tudo mudou, a rotina e a vida que antes corria mais devagar ficou mais depressa. Muito depressa.

A família do meu pai reprovava com todas as letras nossa ida para o Xingu, diziam que eles estavam loucos de levar a gente para a tribo e privar nossa educação.

No final quando retornamos já éramos mais distantes dessa família que sempre morou nos bairros chiques de São Paulo enquanto a gente morava numa cidade-dormitório periférica.
Ainda assim, o Natal e as festas eram com essa família.

Eu me sentia sempre um peixe fora d’água.

Além de todas essas diferenças e choques, essa família era envolvida na moda, roupas de grife, roupas bonitas e caras era o que eles vestiam. Carros importados, comidas internacionais eram a norma.

E a gente vindo do contexto da minha mãe que era pobre, a gente vestia roupas sem marca, roupas de um lugar qualquer do Brás.

O desconforto, a vergonha e a inadequação eram enormes dentro de mim!

Eu queria que apenas não me sentisse um peixe fora d’água ali, mas em todos os lugares isso acontecia.
Tinha sempre uma parte minha que não se encaixava, que não se conectava.

Na igreja nós éramos as riquinhas, filha do pastor e do médico da cidade, a maioria estudava em escola pública e a gente sempre estudou em escola particular.

Com 11 anos na nova escola também sofri muito bullying. Até hoje não sei exatamente porque, virei o bode expiatório da sala. Talvez porque fosse muito alta. Talvez porque fosse muito desenvolvida para minha idade, ou talvez ainda porque fosse ruiva, não sei ao certo. Mas lembro de pedir para sair dessa escola no meio do ano, mas meus pais disseram que isso não era bom pra minha vida escolar. Que eu tinha que continuar ali.

Lembro que foi muito difícil, creio que essa não foi a melhor decisão para mim.

A busca por pertencimento continua

Mas então aos 12 anos eu finalmente fui estudar em São Paulo, e consegui fazer bons amigos, consegui conhecer como um mundo de uma cidade grande, era tão maior. Na minha escola nova tinha gente de todos os tipos, e vários filhos de imigrantes.

Apesar de ter sido um grande alívio por nessa fase ter amigos, tinha um problema ainda que era o fato de quase não ter evangélicos na escola. Na adolescência eu era a única cristã no meu grupo de amigos. Então novamente parecia que uma parte de mim ali não cabia. Não era tudo sobre mim que cabia afinal.

Na faculdade eu me encontrei em partes com a Psicologia: parecia que tinha finalmente encontrado minha turma, pessoas que gostavam das mesmas coisas que eu, entretanto tinha esse grande lacuna de fé. Muitos ainda achavam que ter fé era uma grande bobagem. Então novamente parecia que nem tudo sobre mim se encaixava.

Nessa fase, parecia que só os meus irmãos entendiam o que a gente passava. E talvez por isso eles foram meus intensos companheiros. Até hoje eu e minha irmã temos uma parceria, uma amizade intensa. Só eu e ela sabemos o que vivemos nessas fases.

Quando eu terminei a faculdade surgiu a oportunidade de fugir de toda essa realidade e lá fui eu tentar encontrar pertencimento em outro lugar.
Fui fazer um projeto transcultural americano, mas adivinhem? Lá também eu era a única brasileira, e tão logo me dei conta que mais uma vez eu não pertencia completamente. Eu tentei. Bem que tentei, mas por fim pro Brasil eu voltei.

Completamente perdida, aos 25 anos, sem saber ao certo o que eu ia fazer da vida. Aos poucos fui me encaixando de volta. Fiz alguns grupos terapêuticos, tive oportunidades únicas, e assim fui permitindo ser curada aos poucos, e aos poucos integrando essas partes de mim que estavam tão separadas.

Em 2017, eu esbarrei na Alicia Macedo nos corredores do CBM (Congresso Brasileiro de Missões), e pela primeira vez ouvi falar do Philhos. Alicia disse “vem me visitar em Montes Claros”, e eu fui, e assim parecia que eu tinha reencontrado uma grande amiga da vida. Em pouco tempo parecia que ela me conhecia, por causa de sua experiência e conhecimento sobre a realidade dos filhos de terceira cultura. Ele me ajudou a compreender esta realidade e quando eu fui entendendo mais e mais sobre o que é ser filha de terceira cultura, tudo foi se encaixando, apesar de que eu ainda era relutante de assumir esse “rótulo”. Minha experiência tinha sido tão longe, de quando eu era tão pequena. Tão pouco tempo…
Quando finalmente em um workshop com um expert no assunto, validei minha identidade. Sim, eu sou uma FTC, eu sou filha de Terceira Cultura. E a partir daí tudo fez muito mais sentido.

Tão logo eu percebi que Deus estava desde o começo movendo, desde o começo curando, tratando e me conectando à outros filhos de terceira cultura que precisavam de apoio. Ele me levou até o Philhos, como uma ferramenta para compreender quem sou, quem Ele é para mim e que Ele é meu melhor lugar de pertencimento. Nele, eu sempre pertenci e eu sempre pertencerei.

Dani Piva é psicóloga e terapeuta de grupo, recém casada com Felipe Botega. Tem trabalhado com pessoas que estão imersas em ambientes multiculturais e atualmente faz especialização em arte terapia.

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