Como o recomeçar entre culturas gera impactos nas amizades?
Construir verdadeiras amizades não é algo fácil e simples para ninguém. Mas não dá para comparar o nível de dificuldade em fazer novos amigos quando se trata do início de uma vida em uma nova cultura.
O processo de adaptação transcultural é desafiador em vários sentidos, justamente por causa da quantidade de “novo” em uma dimensionalidade inexplicável. Nos sentimos como “um bebê morando no corpo de um adulto”. Não conseguimos nos expressar efetivamente na língua local, não conseguimos nos transportar sem ajuda, e as coisas mais simples do dia a dia se transformam em grandes desafios.
Vivenciar uma imensidão de desconhecidos ao mesmo tempo, realmente nos faz sentir assim: crianças, dependentes, incapazes, limitados, vulneráveis, perdidos, sem chão.
Na realidade do serviço transcultural, cada vez que mudamos para uma nova cultura, ainda que já experienciado outras transições, sempre será um recomeçar que chega acompanhado de suas alegrias e desafios. E como parte deste recomeçar, se inclui o desafio das novas amizades.
Geralmente nos primeiros meses, este construir de novos amigos acontece quando ainda vivemos em meio há alguns processos como: o luto pela distância daqueles que ficaram, as limitações para comunicação na nova língua, a falta da compreensão cultural que envolve a compreensão do que é apropriado no iniciar de um processo de amizade e do expressar de afetos e emoções. Por isso, esta construção é uma jornada que exige espera, paciência, equilíbrio emocional, intencionalidade, energia e sobretudo a graça de Deus!
Atenção às fulgas!
Vale destacar que nos recomeços é importante estarmos conscientes e preparados para longos períodos de solidão e para esforços intencionais por uma completa presença no novo local. Neste período, um dos maiores perigos é que com as facilidades cada vez maiores do uso da tecnologia, muitos se refugiam nas conexões online, se voltando de forma demasiada para os relacionamentos que já são familiares. Esse comportamento atrapalha o enfrentamento do novo. Algo que se torna um hábito de fuga, por vezes inconsciente, e nos desvia de estarmos presentes de forma íntegra no local. Fator importante e necessário para a imersão cultural e para a construção de novos relacionamentos.
No período de adaptação à um novo local, devemos então buscar sabedoria e discernimento para um equilíbrio saudável entre o manter a conexão com os amigos que já temos, bem como para estabelecermos os limites necessários para estas conexões, nos conduzindo ao enfrentamento dos desafios comuns e necessários para a construção das novas amizades no novo local.
Aos poucos vamos encontrando aqueles que o Senhor nos dará como amigos. E a caminhada vai ficando mais leve.
O tempo e os tipos de desafios neste processo, dependerá não somente de nossos próprios esforços, mas também é preciso considerar o contexto do local e do trabalho em si. Fatores como o participar de uma equipe já existente, o nível de conhecimento da língua local, a existência ou não de outros trabalhadores de sua nacionalidade, entre outros fatores; influenciam na forma e no tempo desta construção de novos relacionamentos.
É necessário ser intencional
Na minha experiência pessoal, chegando à um local de língua e cultura completamente diferente do que me era familiar, a ausência de pessoas da minha nacionalidade, o trabalho em equipe multicultural (formada por diversas nacionalidades) … tudo completamente novo!
As mulheres da minha equipe educavam os filhos tão diferente de mim e achavam estranho as minhas decisões e ações como mãe. Das mulheres de minha equipe de trabalho, eu era a única que cozinhava diariamente, que dava tanto banho nos filhos e que fazia festas de aniversário à brasileira.
Além de ser a minoria tão diferente culturalmente, na equipe de trabalho e em relação ao povo local; o meu inglês e a língua local eram bastante limitados, e eu ainda não conseguia me comunicar o suficiente, especialmente quando se tratava de expressar sentimentos. Imaginem também a dificuldade das pessoas para me compreender, e o trabalho que era para os outros o de estar ao meu lado e responder ao meu desejo de amizade.
Comecei a tentar fazer amizades, fazendo bolos e comidas para oferecer à algumas pessoas específicas na tentativa de uma porta de entrada. É claro que as pessoas gostavam, mas por um longo tempo as conversas permaneceram superficiais. A minha melhor amiga foi a mulher que contratamos para me ajudar com os meninos ainda pequenos, enquanto eu me dedicava ao aprendizado da língua. Uma amizade que perdura até os dias de hoje.
Eu não sabia como me expressar, e como começar. Meu jeito de brasileira e minha personalidade parecia espontâneo demais e intrometida. Tive que me ajustar. Tive que aprender o que seria apropriado, e ainda não deixar de ser quem sou. Tive que abandonar minhas crenças de superioridade da minha própria cultura e me permitir ao ouvir, observar, estar aberta a compreender novas perspectivas, experimentar novas maneiras, e deixar o Espírito Santo me ensinar.
Posso dizer que no meu primeiro local servindo transculturalmente, levei por volta de 2 anos, para construir as minhas primeiras amizades com quem poderia de fato contar e compartilhar temas mais profundos.
Me lembro de um sentimento de solidão que doía na carne neste período, mas que fazia parte do processo. Quantas mímicas, quanta comunicação torcida, mas com certeza um tempo de muito aprendizado, não só da língua e cultura, como também da minha identidade em Deus e em meu relacionamento com ele.
Até aqui, me mudei entre países 5 vezes, e todas as vezes em que preciso construir novas amizades é um grande desafio que envolve o deixar daqueles que aprendemos a amar e o recomeçar em um novo local. Contudo, é também uma grande benção. Um abrir de olhos, o experimentar de um pedacinho da diversidade da criação divina, uma visão global mais ampla que nos leva a um lugar de mais humildade, a saber o quanto somos limitados e necessitamos do Pai.
Hoje, tenho vários amigos e amigas espalhados pelo mundo todo e muitos destes eu sei que só nos veremos de novo na casa do PAI. E ainda assim, posso afirmar que vale à pena. Tenho sido transformada pela experiência de construir amizades mundo afora. E é aqui neste processo que Deus nos quebra, nos refaz, nos conduz e nos ensina. E neste moldar somos transformados e capacitados para servir entre culturas para a sua Glória.