Conhecendo os Filhos de Terceira Cultura (FTC)

Aspectos que diferenciam os Filhos de Terceira Cultura

Alta mobilidade e convivência multicultural marcam a vida do FTC e o distingue dos seus pares monoculturais. Com o deslocamento das suas famílias, por causa da demanda do trabalho dos pais como diplomata, militar, obreiro multicultural, estudante etc, o FTC é criado no exterior, ou em outra cultura, e tem a expectativa de um dia retornar para sua pátria.

A sigla FTC significa Filho de Terceira Cultura. A definição clássica do termo foi escrita por David Pollock e atualizada no livro TCK Growing up Among Worlds, edição III, Van Reken, Pollock e Pollock:

O Filho de Terceira Cultura (FTC) é uma pessoa que durante um tempo significativo dos seus anos de desenvolvimento morou numa cultura diferente da dos seus pais, e desenvolveu um senso de relacionamento com todas as culturas, sem pertencer completamente a nenhuma delas. Embora elementos de cada cultura possam ser assimilados na experiência de vida do FTC, o seu senso de pertencimento se encontra no relacionamento com outros que tenham tido uma experiência semelhante.

O fato de ser um FTC não é simplesmente devido a soma das culturas em que ele viveu. Por exemplo, uma criança que nasce no Chile e vive alguns anos no Japão desenvolve uma terceira cultura não como resultado da junção da cultura chilena com a japonesa, e sim por causa da vivência entre culturas e a vida de alta-mobilidade. Por necessidade, ele desenvolve várias aptidões, podendo, muitas vezes, trocar de línguas, hábitos, trajes, comidas com muita naturalidade devido a uma intuição nascida do seu estilo de vida. Lois Bushong autora do livro Belonging Everywhere and Nowhere (Pertencendo a Todo Lugar e a Nenhum Lugar) fala:

“É um estilo de vida distinto, compartilhado por pessoas que vivem entre culturas, pessoas que alternam com facilidade entre sociedades e línguas, com a sua identidade cultural forjada nisto. Eles têm uma maneira diferente de observar o mundo, de pensar, de raciocinar, de cambiar entre culturas.”

FTCs se conectam com outros FTCs, tanto pelas experiências boas e interessantes, quanto pelo acúmulo de perdas, pelo processo “constante” de adaptação, por se sentirem “peixes fora da água”, de pertencerem e, ao mesmo tempo, não pertencerem. Quando estão com outros FTCs eles se sentem “em casa”.

Os pais do FTC também vão experimentar um pouco do que o FTC sente, pois vivem a vida transcultural e passam pelas mesmas transições. A diferença é que o adulto já tem sua identidade pessoal e cultural estabelecida. Para eles é como se colocasse mais camadas de cultura e experiência em cima do seu núcleo já estabelecido – muitas vezes um núcleo monocultural. Eles fazem a leitura das suas experiências transculturais através do prisma do seu passado. Para o FTC todas as transições e a exposição a novas culturas acontece durante os seus anos de desenvolvimento. Este é o diferencial. O “núcleo” dele vai ser mesclado. Ele nunca vai ser cem por cento de uma única cultura. Ele não vai ver o mundo através de um prisma monocultural. Isto enriquece sua vida, mas também apresenta desafios. Para ele apreciar plenamente a vida profícua e bela que levou ela precisa processá-la bem, especialmente as perdas.

Características comuns da experiência de terceira cultura

Ruth Van Reken destaca algumas características comuns das pessoas que vivem entre culturas, tanto adultos multiculturais quanto FTCs:

  1. Um estilo de vida transcultural.
  2. Alta mobilidade. A alta mobilidade tem um toque de aventura, mas também vem acompanhada de desgastes e perdas. Cada transição, mesmo se for para uma situação considerada melhor, inclui perdas.
  3. Expectativa de repatriação. Na definição original do termo FTC é entendido que um dia ele retornará para a pátria. Há muitos fatores que podem entrar na equação para mudar este cenário, mas, no fim das contas, o único país que é obrigado a receber um indivíduo é o país de passaporte.
  4. Frequentemente existe uma “identidade do sistema” com alguma organização patrocinadora ou empresa (por exemplo: serviço militar, agências enviadoras, empresas/corporações, organizações de serviços internacionais) que influencia os valores e hábitos dos integrantes.

Características Pessoais dos FTCs que foram criados “entre culturas”

  • Mobilidade constante

Além da mobilidade pessoal do FTC as comunidades transculturais estão sempre em movimento com pessoas chegando e saindo rotineiramente. É necessário entender o quanto essa mobilidade afeta nossos filhos. Cada mudança significa transição, cada transição significa perdas: grandes, pequenas, visíveis e ocultas. A medida em que a idade do FTC avança, tais mudanças se tornam ainda mais complexas e difíceis, sobretudo na fase da adolescência, devido ao seu universo de conexões e amizades fora de casa.

As comunidades envolvidas com atividades transculturais tendem a ter um fluxo constante de pessoas chegando e saindo. Mesmo que o FTC não esteja mudando de local ele pode estar experimentando o que chamamos de mobilidade passiva, quando seu mundo está sempre em transição. Percebemos isto de uma forma mais forte em bases e escolas aonde repetidamente pessoas chegam, ficam um tempo específico e depois partem. A criança que mora no local pode ser tão afetada pela perda do amigo quanto a criança que se mudou. Ao longo dos anos, quando isto se repete constantemente, o efeito cumulativo da dor não processada pode levar a criança a se fechar e a não querer fazer novas amizades acreditando que “todo mundo que amo sempre vai embora”.

  • Cosmovisão ampla

Os FTCs aprendem sobre diferentes filosofias e sistemas políticos na sua convivência com outros povos. As pessoas monoculturais geralmente aprendem sobre a realidade das outras culturas através de leituras, jornais e informações intelectuais, no entanto, os FTCs aprendem a ver o mundo de maneiras diferentes porque eles mesmos são expostos a estas realidades. Desta maneira eles passam a sentirem conectados e empatizam com outros países e povos.

  • Enriquecimento cultural

Os FTCs experimentam o mundo da forma que a maioria dos jovens só veem em filmes. Cenários de guerra, aventuras na selva, paisagens exóticas, contato com várias línguas estrangeiras, são vivências pessoais e às vezes cotidianas.

  • Habilidade de percepção e observação

Os FTCs aprendem que vale a pena observar o contexto ao seu redor e tentar entender as suas razões. Eles se mantêm alertas em um novo lugar, ou em uma nova situação, e tentam entender como se comportar ou falar sem se destacarem como diferentes.

  • Habilidades sociais

Os FTCs aprendem a transitarem entre situações e ambientes bem diferentes e assim podem desenvolver habilidades relacionais num nível mais amplo, aumentando sua inteligência social. Algo que não é tão comum para os monoculturais, mas que se torna bem natural para o FTC, é a facilidade de interagir com pessoas de diferentes faixas etárias.

  • Habilidade linguística

Hoje há muitas pesquisas que mostram os benefícios de ser bilíngue, tais como maior capacidades de concentração e de resolução de problemas. A fluência em uma ou mais línguas pode abrir portas no futuro e trazer muitos benefícios pessoais. Aprender novos idiomas quando criança ou adolescente tem mais vantagens do que aprender quando adulto!

Vivendo o Paradoxo

O FTC vive uma vida de muitos paradoxos. Ele pertence, mas não pertence. Ele é brasileiro, mas não pensa como brasileiro e pode até se sentir como um estrangeiro ou imigrante no seu próprio país. Ele viveu muitas experiências ricas, mas pode desconhecer a cultura da pátria, e notícias atuais, a história, as músicas, etc. Ele pode falar 3 línguas fluentemente, mas não dominar a língua acadêmica da escola brasileira.  As vantagens e desafios são como duas faces de uma mesma moeda, aquilo que pode ser vantagem para um FTC pode não ser para outro FTC. Um evento, mudança ou aquisição pode ter seu lado positivo e outro negativo.

Possíveis Vantagens da vida transcultural

  • Flexibilidade e rápida adaptação;
  • Autoconfiança em meio a mudanças;
  • Reconhecimento da importância do tempo presente. Vivem o hoje intensamente;
  • Habilidade de lidar com perdas;
  • Vivência internacional;
  • Habilidades linguísticas;
  • Uma rede de relacionamentos no mundo todo;
  • Cosmovisão mais ampla.

Possíveis desafios de viver entre culturas

  • Falta de raízes. Sentimento de não pertencer a lugar nenhum. Para os FTCs, o senso de pertencimento está nos relacionamentos e cada mudança significa a descontinuidade de relacionamentos;
  • Solidão. Existe uma profunda solidão em muitos FTCs devido às mudanças constantes. Ainda que a família do FTC não esteja mudando, o fluxo de idas e vindas das outras famílias de FTCs causa naqueles que ficam esse sentimento de solidão;
  • Desconhecimento da cultura, história, valores, etc. do seu país de passaporte;
  • Distanciamento de parentes. Crescer longe da família estendida é um desafio para os FTCs que muitas vezes não conseguem cultivar um laço mais profundo com os avós, tios e primos devido à distância;
  • Medo de perdas. Medo de perder relacionamentos e/ou perder oportunidades de realizar sonhos e projetos;
  • Identidade cultural confusa. Geralmente, até a adolescência, o FTC não tem muito questionamento quanto a sua identidade, identificando-se com o local onde mora, com a família ou a comunidade. A adolescência é a fase quando a identidade está sendo consolidada e esta pode ser mais difícil para um FTC do que para um monocultural. Na reentrada ao país de origem, questionamentos como “Quem sou eu?” ficam mais fortes, pois as diferenças, por serem FTCs, afloram mais;
  • A dificuldade de manter a língua materna;
  • Dificuldade em se estabelecer em um lugar, emprego ou relacionamento devido ao padrão de constantes mudanças na sua vida;
  • Dificuldade na vida acadêmica.

Precisamos reconhecer tanto o bom quanto o difícil, sabendo que o difícil não anula o bom. Podemos ajudar o FTC a enfrentar os desafios com fé e compreensão, não negando a dor que sente, nem abafando a alegria que brota. Ao processar bem a sua vida, o FTC consegue aproveitar melhor o lado belo de ser um FTC e florescer na sua unicidade.

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Alicia Bausch Macedo é fundadora do Philhos, o ministério para o FTC, através da AMTB – é autora do livro Estamos de Mudança, e organizadora do Manual Flechas, e dos livros A Presença do PaiCriando Filhos Entre Culturas e Estudante Global.

4 comentários em “Conhecendo os Filhos de Terceira Cultura (FTC)”

    1. Oi Maslova, incrível como logo nos identificamos quando lemos sobre os FTCs, né mesmo? Eu penso que uma das maneiras que podemos ajudá-los é fazendo-os conscientes das suas peculiaridades como FTCs, a fim de amenizar as crises de identidade.

  1. Virginia Santandrea Barbosa

    Boa tarde! Amei a leitura. Minha filha estudou em 3 países diferentes, enquanto estávamos em missões, no ensino fundamental. Hoje, com 21 anos ela está enfrentando dificuldades de pertencer a um só pais!

    1. Olá Virginia, desejo que sua filha possa encontrar outros amigos que tenham vivido essa mesma experiencia e possa se identificar, mas sei o quanto é desafiador, bem típico dos FTCs.

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