Uma confissão sobre
Adaptação, Choque cultural,
Identidade & Chamado
Minha irmã caçula disse que desde que eu decidi ir para o Timor, todos os lugares foram sala de espera, mas agora eu estava em casa! É assim que vi minha vinda para o campo missionário… Não foi o retorno para um lugar conhecido, nem o reencontro com um povo que havia deixado saudades, nem a volta para um ambiente aconchegante que eu chamava de lar, foi uma partida para o lugar onde eu sabia que deveria estar e acreditava ser onde Deus me queria e eu o chamava de casa!
Já ouvi dizer que o corpo vem de avião e a alma vem de navio. A minha experiência foi de um corpo deslocado, sofrendo tudo que podia para se adaptar, com direito à intoxicações, alergias e muitos problemas intestinais, mas uma alma serena e tranquila, fortalecida e decidida, disposta a aprender e superar os desafios que o ministério traria.
Você, pessoa multicultural, está lendo agora e pensando: ela ainda está na fase lua de mel! E é possível que Deus tenha me dado uma lua de mel de sete meses, mas eu já senti falta da mala que não veio, das palavras fazerem sentido, já me irritei com as escolhas inadequadas que fiz, com o câmbio, com a falta de algo ou a presença de algo… E nada disso, por um momento sequer, me fez pensar que eu estivesse no lugar errado ou que deveria voltar para o Brasil. Afinal, estou em casa, para onde mais eu iria?
Mas você, pessoa multicultural, assim como eu, deve ter pensado que, no campo, seria outra pessoa, talvez menos apressada, mais ligada no flow, talvez mais santa e dedicada a horas de intercessão e estudo da Bíblia. Pois qual não foi minha surpresa, e provavelmente a sua, quando eu descobri que eu não era assim!
Eu não conseguia entender muita coisa, estava sempre cansada do processo de comunicação, as doenças me prostraram e eu nem conseguia aplicar o que meu treinamento missiológico tinha me ensinado. Eu não tinha problemas com o país, ter que aprender a língua, ser atacada por uma alergia ao calor no tempo fresco, meu problema era comigo. Eu não era quem eu esperava que fosse e então cheguei à conclusão do quão incapaz eu era!
Ver-me dessa forma foi humilhante. Deus tinha me enviado com uma história linda de cuidado e perseverança depois de exatos 10 anos de processo pré-campo e agora era a minha hora de mostrar que ele podia contar comigo, que eu dava conta. Até aqui me ajudou o Senhor e agora eu posso andar sozinha!
Você está rindo de mim! A conclusão que você chegou agora é que quem pensa assim, só pode se decepcionar. Pois bem, quantas vezes você achou que o cuidado da família no Brasil era responsabilidade sua? Que a vida espiritual dos seus filhos dependia de você? Que suas decisões implicam em ter de lidar com as consequências sozinhas?
Quantas vezes achamos que o nosso estado físico, mental, espiritual, relacional é empecilho para o que Deus quer fazer? Quantas vezes acreditamos que nosso comportamento errado para a cultura local coloca em risco nosso ministério e a culpa é toda nossa? Eu não estou falando que devemos abraçar os erros ao invés de aprender com eles, eu estou perguntando: quem você pensou que era?
Eu pensei que fosse uma pessoa dependente de Deus, mas essa Tábata missionária, a que deveria ser mais santa, ela também deveria ser mais autônoma. Eu pensei que eu fosse jovem que sai de casa pela primeira vez e espera nunca mais precisar dos pais! Pense como foi necessariamente humilhante.
Não tinha mesmo como ser ou mesmo me sentir capaz de fazer aquilo que eu me propus a desenvolver como ministério, afinal, Jesus já tinha dado o spoiler “Eu sou a videira; vós sois os ramos. Quem permanece em mim e eu nele, esse dá muito fruto; porque sem mim nada podeis fazer.” (Jo 15.5)
Foi quando eu me voltei pra Deus – como a filha pródiga que liga pra mãe perguntando como é que faz aquele prato que a gente sempre come em casa – é que eu me vi como deveria me ver. E quando eu me encontrei, pasmem!, eu era só a Tábata. Não era mais, nem menos santa, não mais, nem menos capaz, tudo que eu não sabia, eu continuava não sabendo e tudo que eu tinha que aprender ainda me aguardava.
E tudo bem! Sabe por quê? Porque quando você vai pra casa do outro lado do oceano, o Pai está te esperando. Ele veio antes para preparar o lugar, aplainar o caminho, preparar o pasto, afinal, aqui também é casa dele! E estar em casa com o Pai é infinitamente melhor e mais efetivo do que qualquer grito de independência à beira de um riacho.
Porque quando você vai pra casa do outro lado do oceano, o Pai está te esperando. Ele veio antes para preparar o lugar, aplainar o caminho, preparar o pasto, afinal, aqui também é casa dele!
De volta à dependência, eu descansei nos momentos de doença e me entreguei ao ritmo que Deus estava me dando; eu entendi que, a despeito da minha necessidade de aprender a língua, ainda era tempo de fazer as devocionais em Língua Portuguesa e não em Tetun; quando eu tive menos pressa em simplesmente falar, meus olhos foram abertos para o que Deus está fazendo nesse país – eu tenho a impressão que temos olhos mais abertos quando a boca está fechada.
No Brasil, mesmo com a pandemia, eu tinha semanas com quatro encontros para estudo bíblico. Aqui, eu continuei meu ministério com muitos dias de sentar e apenas tomar café ou chá, dias de dizer “bom dia” para os vizinhos ou de simplesmente ir à feira e bater um papo enquanto comprava a mistura do almoço, dias de ir ao culto sem entender muita coisa e dias de falar “sim, o Neymar é muito bom!”.
É verdade que Deus enviou uma vizinha que me pediu para ensinar Bíblia pra ela e eu sempre digo que “este é o sonho de qualquer missionário”. Eu registro isso porque começar esse estudo bíblico foi o fim do meu encontro comigo mesma. Deus enviou e recebeu a Tábata no campo e é a Tábata que ele vai usar para abençoar este povo… E quem é a Tábata? A moça que conhece os vizinhos e estuda a Bíblia com eles! Saber que ser eu mesma bastava foi como desencaixotar as últimas coisas da mudança e dizer: “agora terminamos de chegar!”.
A Tábata que saiu é a Tábata que chegou. Invariavelmente, eu sofrerei mudanças, vou sim crescer em santidade, serei influenciada pela cultura, talvez eu até vire uma pessoa que come banana cozida com pimenta, mas uma coisa sempre será: sou a filha do Pai e ele se agrada de mim. Pra onde quer que eu vá, estarei em casa, porque todo lugar é a casa do meu Pai e na presença dele eu sempre posso ser eu mesma.
Tábata Mori é jornalista, obreira multicultural no Timor-Leste onde desenvolve um projeto de publicação de literatura e incentivo à leitura.
Você pode ler mais sobre o tema em “Só, mas acompanhada”
Que texto maravilhoso! Tábata, você “traduziu” na íntegra os sentimentos que passamos ao chegar no novo país. Muitas vezes são inexplicáveis.